sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Os dividendos do oportunismo

Dizem as notícias vindas hoje a lume que a Portugal Telecom se prepara para uma distribuição extraordinária de dividendos ainda durante 2010, fugindo, assim, à tributação prevista na lei que entrará em vigor a 1 de Janeiro de 2011. Segundo essas notícias, são cerca de 70 milhões de euros que deixam de entrar nos cofres do Estado, numa altura em que o Pais está a braços com uma crise económica e financeira que obrigou a duras medidas de austeridade para quase todos os Portugueses.

É curioso verificar como certas empresas utilizam e se servem do Estado, que somos todos nós.

Quando convém, invoca-se o interesse nacional, a utilidade pública, o valor estratégico (para quem?). Não se hesita em recorrer ao Estado quando a situação é crítica.

Aconteceu assim quando a Telefónica lançou uma oferta de aquisição sobre a Vivo. Lá teve o Estado que intervir, puxando da ‘golden share’, para salvaguardar o interesse nacional. Com isso, ganharam-se mais 350 milhões de euros. Todos – Estado, accionistas e o povo em geral – ficaram satisfeitos! Salvou-se o interesse nacional! Salvou-se o País!

Seria, por isso, de esperar que, quando o País precisa, quem a ele recorreu em situação de afogo o pudesse agora ajudar, pagando impostos. Mas, de repente, o Estado já não é para aqui chamado. Os accionistas são soberanos e o Estado – aquele mesmo Estado a quem se recorreu em desespero de causa – não pode nem deve intervir.

São estes os dividendos do oportunismo, num País que, à beira do abismo, parece não se respeitar a si próprio.

domingo, 25 de abril de 2010

A escravatura do século XXI

Vivemos em democracia e a teoria diz-nos que os valores de liberdade, igualdade, justiça social e fraternidade são respeitados e praticados por todos. Na prática, a sociedade está muito longe desses valores, que são prontamente invocados pelos poderosos para sua defesa e repetidamente negados aos fracos.

Parece este um discurso retrógrado, do início do século XX ou, então, dos anos 1970 (a diferença não é muita pois o país parou meio século entre essas duas épocas), mas há que por de lado preconceitos de esquerda e de direita – que já não existem – e olhar simplesmente para as pessoas.

A liberdade e igualdade de quem ganha algumas centenas de euros por mês é curiosa: podem deixar de trabalhar ou mudarem de emprego, mas a realidade nega-lhes esse direito; podem ir para onde quiserem, viajar, tirar férias, ir almoçar fora com a família, mas a realidade nega-lhes esse direito; podem dedicar-se à cultura, tirar cursos, visitar museus, ler, ir ao cinema, mas a realidade nega-lhes esse direito; têm o céu como limite, mas a realidade não os deixa tirar os olhos do chão. Podem apenas aspirar a sobreviver.

Serão livres ou serão estes os escravos do século XXI ?

quarta-feira, 24 de março de 2010

Comemorar, mas pouco!

Decorrem, neste ano de 2010, as comemorações do centenário da implantação da República. Até agora, o que há de saliente nessas comemorações é o facto de passarem despercebidas ao comum cidadão. Há uma quase total ausência de entusiasmo acerca dessas comemorações e só se houve falar delas quando um ou outro político, numa qualquer cerimónia, explora esse facto na expectativa de alegrar o discurso.

Afinal, pouco há a comemorar. O que aconteceu nos últimos 100 anos? De 1910 a 1926 a instabilidade politica e o caos foram constantes – prontamente atribuídos à conjuntura internacional – deitando por terra todas promessas largamente apregoadas pelos idealistas republicanos. De 1926 a 1974 tivemos quarenta e oito anos de repressão, pobreza, subdesenvolvimento e atraso. De 1974 a 1986 sucedeu-se um novo período de instabilidade, insegurança e incerteza, só ultrapassado com a adesão à União Europeia.

Vivemos em democracia, é certo, e isso é um valor inestimável. Tirando isso, nunca como agora houve tanta injustiça social, tantos privilégios injustificados, tantas diferenças entre ricos e pobres, tanto desemprego, tantas pessoas no limiar da pobreza ou abaixo dele, tanta agitação social, tantas situações desesperadas e tanta insensibilidade.

De facto, pouco ou nada parece existir que valha a pena comemorar em Portugal. Mas se isso levanta a moral deste nosso país, que se comemorem então os 100 anos da República, ainda que mais pelo número em si – que é redondo e bonito – do que pelos resultados que a República nos trouxe. À falta de melhor, ao menos que sirva esse facto de pretexto para que se comemore alguma coisa.

domingo, 21 de março de 2010

O défice de decência

Li há poucos dias num jornal de economia que, apesar da profunda crise económica que grassa em Portugal e no Mundo (mais no primeiro do que no segundo), determinada grande empresa portuguesa tinha conseguido obter, no ano de 2009, mil milhões de euros de lucro.

Naturalmente que tal facto era apontado como algo de muito positivo para a economia, dado que é de empresas sólidas que se faz uma economia sólida, blá blá blá blá blá blá, tal como todo e qualquer bom economista – daqueles que têm nas últimas décadas e, até, no último século, levado aos excelentes resultados do país – defende. Isto fez-me reflectir em três questões que passo a abordar.

A tese de que os grandes lucros são indicadores de economias sólidas não passa – em meu entender, que sou leigo, mas que tenho a meu favor não ser um iluminado economista responsável por crises económicas nacionais – de um enorme mito. De facto, a história mostra que é em épocas de crise profunda que os lucros crescem desmedidamente, assim como é nos países mais pobres que se encontram enormes fortunas. Não é por acaso que o fosso entre ricos e pobres se tem vindo a agravar fortemente neste nosso país há décadas em crise.

Naturalmente que o Estado – muito criticado por intervir e por não intervir – deveria, de alguma forma, exercer uma função reguladora, protegendo os mais fracos e moderando os mais fortes. É assim nos países desenvolvidos e ricos, onde o Estado funciona. É claro que, neste caso, só em impostos o Estado vai receber 100 milhões de euros, pelo que não há interesse em regular o que quer que seja. Se ao menos o contribuinte tivesse a certeza de que esse dinheiro seria bem usado, do mal o menos.

O que me espantou mais, acima de tudo, foi o facto de essa empresa ter, por diversas vezes, afirmado que os preços dos bens/serviços que iria prestar teriam que subir num futuro próximo, pois há um défice de facturação, no que foi logo secundada pela entidade reguladora do sector. Provavelmente por eu ser leigo, como já acima referi, é que não percebi. Pensava eu que se uma empresa dá tantos lucros é porque está a facturar de tal forma que consegue compensar todos os custos de produção e ainda lhe sobra dinheiro para investimento. Certamente que, na minha ignorância, estou enganado, e há mesmo necessidade de subir os preços. Ou isso ou então, em vez de défice de facturação, o que existe é um défice de decência.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Meteorologia e Economia – semelhanças e diferenças

À primeira vista, meteorologia e economia nada têm em comum. Há, no entanto, quem diga que a semelhança reside no facto de as condições meteorológicas dependerem tanto dos meteorologistas como a economia depende dos economistas: nada. Existe, no entanto, uma outra semelhança: quer meteorologistas quer economistas são proficientes a explicar o que se passou e frequentemente falham na previsão do que se vai passar. Por este motivo, também frequentemente, parecem mais artes de adivinhação do que respeitáveis ciências.

Já no campo das diferenças, muito mais há a dizer. Para além daquelas que resultam da natureza totalmente diversa do seu objecto de estudo, há uma que considero a mais marcante de todas: a diferença de atitude e comportamento que induzem nas pessoas, em face de uma catástrofe.

As catástrofes meteorológicas despertam, em regra, forças anímicas insuspeitadas e gigantescas ondas de solidariedade. Tomemos como exemplo a catástrofe que assolou a Região Autónoma da Madeira em 20 de Fevereiro de 2010. Chorando ainda as vítimas, o povo da Madeira uniu-se e ergueu-se acima de todas as adversidades, mostrando a sua indomável vontade de vencer. Por outro lado, todo o País se juntou, a todos os níveis, no apoio à Madeira.

Já em presença de catástrofes económicas a atitude é radicalmente diferente. Os interesses mesquinhos tornam-se mais mesquinhos, a exploração e o lucro a todo o custo trazem à superfície o que de pior existe nas pessoas e nas organizações. Pensemos nos resultados da catástrofe económica que assola o Mundo desde finais de 2008. Empresas com lucro despedem pessoal para reduzir custos e aumentar ainda mais os lucros. Entidades financeiras clamam por ajuda dos Estados e, logo que a obtêm, recusam-na a quem lhas pede. Os valores sociais quase desaparecem e tudo se passa a reger por uma lógica ainda mais cegamente economicista.

É interessante – e, infelizmente, trágica – esta diferença. E, afinal, pensando bem, nem deveria existir tanta diferença pois, quando toca a catástrofes, quer as meteorológicas quer as económicas têm as mesmas vítimas: as pessoas.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O precário descanso de D. Afonso Henriques

No Diário de Coimbra datado de 10 de Dezembro de 2009 deparei-me com uma notícia intitulada “Investigadora vai realizar novo esforço para abrir túmulo de D. Afonso Henriques”. Em sub-título, sugere-se que a tentativa de há cerca de três anos se gorou pois houve “medo que a História fosse mudada”.

Porque estou a habituado, por formação (ou deformação) profissional, a tentar encontrar justificações racionais para as coisas – ainda mais quando estas se revestem de potencial importância – perguntei-me se, de facto, o objectivo da tentativa de 2006 e, já agora, desta anunciada nova tentativa foi ou será o de mudar a História. Existirá algum motivo científico que justifique a exumação e realização do pretenso estudo das ossadas do Fundador de Portugal, D. Afonso Henriques?

A haver tal motivo teria, de facto, de ser de natureza histórica. Quais os historiadores que reclamam a necessidade do estudo e quais os factos históricos concretos que importa clarificar? Tanto quanto consegui apurar, nenhuns! Com efeito, em termos de ciência histórica, não existem quaisquer dúvidas relevantes que o estudo tenha por objectivo ou possa esclarecer.

Por outro lado, a investigadora que pretende justificar a abertura do túmulo com alegados motivos de natureza histórica não é historiadora e sim antropóloga. Ora, determinar a estatura, determinar o tipo de alimentação, analisar possíveis fracturas, ou proceder a uma sempre duvidosa ‘reconstituição’ facial, em nada contribui para o conhecimento da perfil histórico de D. Afonso Henriques.

Também em termos biológicos e/ou antropológicos, não existe qualquer valor científico no estudo, pois não se reveste de particular dificuldade, não vai conduzir a qualquer avanço das ciências em causa, nem será diferente de qualquer outro estudo da mesma natureza que se tenha realizado ou venha a realizar sobre ossadas de indivíduos da mesma época ou de épocas próximas.

Se cientificamente não parece existir justificação para o estudo em causa, porquê esta atracção pelo túmulo de D. Afonso Henriques e porque é que o estudo das suas ossadas colhe o aplauso e incentivo de vários cidadãos menos ligados à ciência histórica ou outra? Em boa parte, porque é moda, porque o folclore das séries de televisão do tipo C.S.I. lhes entra pela casa dentro, por simples coscuvilhice disfarçada de curiosidade histórica e porque a tecnologia o permite.

Acessoriamente, fugindo ao raciocínio objectivo e claro, vai-se dizendo que ‘houve medo’, que ‘o material veio do estrangeiro’, que no último minuto a intervenção foi ‘desautorizada’ e que ‘túmulos históricos são abertos um pouco por todo o mundo’. Será que se insinua que somos, por isso, atrasados? Que lá fora é que se sabe fazer as coisas? Que se começarmos a abrir túmulos damos um sinal de modernidade? Infelizmente, muitas pessoas se deixam levar por argumentos deste tipo, despidos de qualquer racionalidade. Por vezes, até o bairrismo é chamado à questão, chegando mesmo alguns habitantes locais a ficarem ‘indignados’ por esta ‘afronta’ do poder central.

Nenhum túmulo histórico anteriormente aberto noutras partes do mundo o foi de ânimo leve e seguramente, também não o foi porque um determinado investigador particular se lembrou de o fazer. Obviamente, não é por não se abrir túmulos de figuras históricas que o País fica mais atrasado. Também obviamente, ninguém coloca em causa a capacidade técnica e científica dos nossos investigadores, em geral, nem da investigadora que propôs o estudo, em particular, cuja reputação é sobejamente conhecida. A questão é que este tipo de estudos tem que ser sólida e objectivamente fundamentado em necessidades amplamente sentidas e reconhecidas pela comunidade científica e, no caso concreto da abertura do túmulo do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, essa fundamentação é manifestamente inexistente.

Nada se ganha, por isso, com o estudo proposto. O único resultado prático de tal estudo será, no essencial, o aumento da notoriedade alcançada pela sua responsável, conseguida não à custa do mérito científico do estudo, mas sim da extraordinária dimensão e importância da figura que dele será alvo. Antes de se gastar recursos nisso, melhor seria que recursos equivalentes fossem aplicados na recuperação da velha Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, que, com o passar dos anos, se tornou num espaço triste e sombrio, muito aquém do que se impõe para local de descanso dos dois primeiros reis do nosso Portugal.